Crônicas do cotidiano: As travessuras de Jade

Sempre convivi com cachorros amáveis, embora seja verdade que alguns deles, de raça
mais ameaçadora, causam medo. No geral, gostava deles por perto, até porque fui criado
tendo a companhia de um. Meus pais tinham um da raça ¨Pequinês¨, que não era lá muito
amistoso e seu cheiro não era também dos mais agradáveis.

Provavelmente você deve estar pensando que também tem uma história a ser contada talvez
sobre seu gato, cachorro, ou mesmo um papagaio falante. Eu sei que muitos terão também a
sua história e acho, sinceramente, que deveriam contá-la, porque a minha forma de
homenagear esta ¨dama¨ que passou por minha vida e deixou imensas saudades, é
escrevendo uma página sobre uma companhia que chegou de mansinho e foi embora de
forma tão triste. Vamos a história…..

Anos passam e, um dia, já na meia idade, casado e com filhas, resolvi comprar um cachorro
em visita ao shopping numa exposição de cães. Ali ví, pela primeira vez um da raça Akita,
que me encantou à primeira vista. Era o cachorro que elegi para adquirir, porém precisava
primeiro pesquisar sobre esta raça. É um passo básico para não ter surpresas.

Voltando para casa com a família, sem cachorro nenhum, comecei a pesquisa pela internet e
havia inúmeras páginas com ricas informações da personalidade desta raça.Era tudo o que
eu queria…Dóceis e excelentes cães de guarda; não latiam, mas atacavam quando algum
estranho entrasse na residência….Amáveis com as crianças…Fiéis aos donos e um
verdadeiro amigo a quem ele elegesse como dono.

Conheci, naquela ocasião, a história real de um cachorro Akita, que muito depois virou
filme, com o ator Richard Gere, com o título “Hachiko: A Dog’s Story” .

A fidelidade e a amabilidade daquela raça me conquistaram. No sábado seguinte, voltamos
ao shopping e adquirimos um da raça, fêmea, à pedido geral da família, que prontamente foi
batizada com o nome ¨JADE¨ pelas minhas filhas, pois na época assistiam a novela da rede
Globo e quiseram homenagear a ¨personagem¨….Tudo bem, dar nome de pessoas aos cães
não era novidade e assim ficou.

Não levamos ¨JADE¨de imediato, porque nos convenceram de que seriam necessários 3 dias
para terminar as vacinas e poderíamos buscá-la depois deste prazo.
As crianças estavam muito entusiasmadas e ansiosas para buscar a pequena ¨JADE¨.
Passado o prazo, lá fomos nós buscar o mais novo membro da família.

Localizamos uma casa muito simples onde era o canil . As cenas que encontramos eram das
piores; um caníl fétido, os cães sem nenhum cuidado. A ¨JADE¨ que já era nossa porque já
havíamos pago pelo animal, estava dentro de um cubículo com outros pequenos cães, todos
em estado lamentável. Procuramos enrolá-la em uma manta. A filhotinha estava muito suja
e com algumas pulgas…era de dar dó…Teríamos sorte se ela não tivesse algumas daquelas
doenças que atacam os cachorros com pouco tempo de vida. A vontade que nos deu foi
denunciar esta pessoa irresponsável, mas na visita seguinte à exposição, fiz questão de
alertar outros interessados e questionar com a comerciante a sua total falta de humanidade
com os cães. Lembro-me ainda de ter enviado um e-mail para a Associação dos criadores e
expositores de cães.

Levamos ela direto para um veterinário, porque suas fezes tinham um odor fétido e com
uma cor esverdeada. A veterinária tratou dela de imediato, dando vermifugo e que
deveríamos esperar pela reação dela aos remédios. Tirou muitas pulgas e dava muito dó vêla naquele estado. Senti um certo conforto em ter tirado ela de lá, independentemente dela estar conosco, lamentava pelo futuro dos que ficaram.

JADE superou todas as adversidades e foi se recuperando nos dias que vieram; no início
caminhava com certa dificuldade e muito magra. Devagar foi se fortalecendo e recuperando
as suas forças. Começamos a nos sentir aliviados desta fase muito difícil e dia a dia
ficávamos mais ligados a ela. Realmente era um novo membro da família que estávamos
aprendendo a amar.

O entusiasmo era muito grande e, passado algum tempo, em outro canil, adquirimos o Léo,
outro da mesma raça. Para tristeza de Jade, o cãozinho que era miúdo, dava em cima dela e
assim Jade não tinha mais sossego. Também viu, de uma hora para outra, o seu reinado ser
dividido e o seu novo par dava mijadas mais fortes em todos os cantos…era um mijando em
um local e o outro em outro local…uma marcação de território acirrada e alguém tinha que
fazer um trabalho nada agradável.

Como morávamos em uma casa bem grande, construí um canil classe A, porque precisava
dividir o ambiente em dois, para que a Jade pudesse ter um pouco de sossego. O Léo era
terrível, não dava descanso para ela, queria brincar e mordiscava as suas patas, atropelava-a
naquele seu jeito atrapalhado de ser. A pobre coitada me olhava com um pedido de
Socorro!!! Até que um dia, dei o Léo.

A Jade nunca mais perguntou por ele(rsrsrs)…era de novo a rainha de algumas centenas de
metros de grama…todos seus!

Aquela “menina”cresceu; tinha uma docilidade de uma “dama” culta e bela; seus cílios eram
estranhamente brancos, seu olhar doce e safado, porque ela sabia como ninguém que tinha
feito algo errado…se virava andando, quase rastejando em direção oposta ao interlocutor da
bronca..passados 2 ou 3 minutos…vinha balançando de novo o rabo. E se fôssemos nós a
pegar pesado com ela, do mesmo jeito ela se afastava com um olhar triste…mas passados
menos de 2 minutos, voltava saltitante, feliz, querendo um agrado. Era tudo o que ela
queria.

Quando eu me arriscava a sair com ela pela rua, bastava pegar a corrente ou simplesmente
dizer a palavra mais doce que conhecia…”passear”. Ela resistia em colocar a coleira, mas
estava logo a postos no portão.
Lembro-me que ficava impressionado porque, em uma determinada época, trabalhava em
São Paulo e morava em Águas de São Pedro, então eu passava apenas os finais de semanas
em casa.

Toda vez que eu chegava às sextas-feiras em casa, ela já estava no portão esperando, fizesse
sol ou chuva e lá estava ela. Achava aquilo incrível! Como sabia que eu estava chegando?
Um dia fiz um teste e, antes de sair da empresa em São Paulo, liguei para casa e pedi para
minha esposa que ficasse vigiando a Jade….subi no carro em SP e ela levantou as orelhas.
Como eu levava cerca de 3 horas e meia no trajeto, quando faltava meia hora para minha
chegada, ela saiu de seu “esconderijo”e foi para o portão. Existe alguém que faça o mesmo
por você?

Depois de que deixei a empresa em São Paulo, tomei a decisão que ocasionou uma mudança
terrível em minha vida, decidimos mudar para Florianópolis. A Jade teria que ser dada à
outra família. Procuramos muito uma nova família para ela. O ponto principal era que a
família que a aceitasse cuidasse muito bem dela. Não havia ninguém que a
quisesse…Colocamos cartazes nas lojas que vendem rações e filhotes…As pessoas não
queriam um cachorro adulto. Por fim, quando a data de fazer a mudança estava chegando,
decidimos levá-la para um canil, pagar alguns meses antecipados, até que surgisse uma nova
família para ela.

Encontramos um canil onde tinha muitos cachorros, tipo hotel para cães. Conversamos com
os donos, vimos todos os ambientes e era uma chácara. Com o coração apertado acertamos
tudo e distraímos ela para que pudéssemos ir embora. Estávamos todos lá, eu, as minhas
filhas. Quando subimos no carro, e íamos sair, vimos ela desesperada, correndo pelos
arbustos que faziam a cerca viva da chácara, debatendo-se muito….Voltamos no mesmo
instante e levamos ela embora.

Depois uma pessoa se prontificou a ficar com ela, levou-a para casa e eu ía todo dia vê-la.
Aparentemente estava gostando, pois me ignorava quando eu chegava; sabia que estava
aborrecida comigo. Alguns dias se passaram, até que ela fugiu e foi achada. Busquei-a de
novo e levei de volta para casa.

Eu só tinha mais 10 dias e ninguém aparecia. Estava desesperado e sem saber o que fazer.
Tinha uma amiga de trabalho que, ao ouvir e ver minha preocupação se propôs a ficar com
ela. Marina morava com o filho já rapaz e, de vez em quando, seus netos a visitava. A Jade
adorou ficar com esta nova família; finalmente havia encontrado um novo lar. Ela abanava
o rabo quando eu chegava, mas em seguida virava as costas e ficava na dela. Eu respeitava o
que sentia, embora sabia que não tinha saída…eu e ela sabíamos disso.

Três dias antes de me mudar, por volta das 22:30hs, Marina liga e aos prantos pede que eu
vá até a sua casa com urgência, algo havia acontecido com a Jade….Fui voando…Cheguei e
a vi estática, olhos abertos e rígida…Estava morta.

Pedi a um amigo que me ajudasse a enterrá-la e ele, gentilmente, levou para enterrá-la em
sua chácara. Marina contou que ela saiu correndo da garagem, se debatendo e esfregando o
seu corpo desesperada nos muros, provavelmente, teria sido morta por alguém.Tentei
confortá-la pois vi seu sofrimento. Havia perdido a Jade desta forma e a família não se
conformava….Nem eu.

Naquela noite fui responsável indireto pelo sofrimento de todos, não pela morte de Jade,
mas porque aprendi, de uma forma muito dura, que somente quando tiver certeza de que
vai ficar com um animal até o fim da vida dele é que poderá adquirí-lo. Levarei esta culpa
para sempre.

No dia seguinte contratei um veterinário e acompanhei a biópsia de Jade. Alguns dias
depois, já morando em Florianópolis, a Marina me avisou de que a Jade tinha sido
envenenada por chumbinho, pois os resultados dos exames haviam saído. Como pode existir
alguém que, sem motivo algum, tira a vida de um ser e, ainda, desta forma? Para mim, ficou
como exemplo que, em nossas decisões, devemos pensar muito, avaliar com profundidade,
porque nas resoluções que tomamos, nossas atitudes afetam, muitas vezes, outras pessoas ou
seres que nos são importantes. Basta um passo em falso para alterar todo o nosso futuro e a
perda de um animal que foi muito significativo, do ponto de vista do afeto, como a querida
Jade.

Para finalizar, mudamos para Florianópolis. Foi a pior decisão de minha vida, não pelo lugar
que é belíssimo, mas por outros fatores. Por fim, separado de minha família, só e sem rumo,
quase acabo ficando naquela ilha e não duvido que poderia também ter um final triste, se
não fosse eu ter gritado muito por ELE. Tenho certeza que a” pilha” já estava acabando.
Hoje eu sei que ambos me escutaram…ELE me deu sua generosa mão. Ela, rabo
balançando, deu a lambida mais doce que já recebi….seu olhar não estava mais triste.
comigo. Saudades eternas deste animal que ensinou tantas coisas que nossos semelhantes
nunca vão poder ensinar…Porque eles nos amam incondicionalmente.

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